segunda-feira, 7 de março de 2011

"Essas mulheres", por Joel Bueno (adaptada)
















Essas mulheres que foram queimadas pela Igreja porque sabiam fazer poções melhores que os remédios dos médicos. Que foram estupradas pelos heroicos guerreiros de todas as guerras heroicas. Que foram trancadas nos conventos, e na clausura criaram os doces mais gostosos do mundo. Que substituiram seus homens nos teares da indústria, trabalhando 16 horas por dia pela metade do salário, passando fome e adoecendo de tísica. Que lutaram pela liberdade nas barricadas da Comuna de Paris ou nas trincheiras da Guerra Civil espanhola. Que jogaram o espartilho no lixo e saíram às ruas para exigir seus direitos políticos. Que foram artistas do palco tratadas como prostitutas. Que foram prostitutas tratadas como prostitutas. Que tiveram os seus corpos mutilados para não sentir prazer no sexo. Que tiveram as suas mentes mutiladas com a mesma intenção.
Essas mulheres que viveram a vida, trabalharam, cuidaram da geração passada e da geração futura, contaram e recontaram histórias, choraram, riram a valer, se divertiram como puderam, tentaram ser felizes.

Essas mulheres X















Cora

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas era doceira, tinha pouco estudo, nasceu em 1889 na cidade de Goiás e viveu quase toda vida no interior. Na adolescência publicou uma coisa ou outra no jornalzinho da sua terrra, mas só teve um livro editado em 1965, com mais de 70 anos de idade. Seu nome de poeta era Cora Coralina.
Alheia aos modismos literários e muitas vezes à margem das regras da gramática, sua poesia se alimenta do cotidiano, do folclore, da realidade interiorana, da introspecção.

Aninha e suas pedras
Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Eu Voltarei
Meu companheiro de vida será um homem corajoso de trabalho,
servidor do próximo,
honesto e simples, de pensamentos limpos.
Seremos padeiros e teremos padarias.
Muitos filhos à nossa volta.
Cada nascer de um filho
será marcado com o plantio de uma árvore simbólica.
A árvore de Paulo, a árvore de Manoel,
a árvore de Ruth, a árvore de Roseta.
Seremos alegres e estaremos sempre a cantar.
Nossas panificadoras terão feixes de trigo enfeitando suas portas,
teremos uma fazenda e um Horto Florestal.
Plantaremos o mogno, o jacarandá,
o pau-ferro, o pau-brasil, a aroeira, o cedro.
Plantarei árvores para as gerações futuras.
Meus filhos plantarão o trigo e o milho, e serão padeiros.
Terão moinhos e serrarias e panificadoras.
Deixarei no mundo uma vasta descendência de homens
e mulheres, ligados profundamente
ao trabalho e à terra que os ensinarei a amar.
E eu morrerei tranqüilamente dentro de um campo de trigo ou
milharal, ouvindo ao longe o cântico alegre dos ceifeiros.
Eu voltarei...
A pedra do meu túmulo
será enfeitada de espigas de trigo
e cereais quebrados
minha oferta póstuma às formigas
que têm suas casinhas subterra
e aos pássaros cantores
que têm seus ninhos nas altas e floridas
frondes.
Eu voltarei...


Essas mulheres IX

Rosa










Aqui jaz
Rosa Luxemburgo,
judia da Polônia,
vanguarda dos operários alemães,
morta por ordem dos opressores.
Oprimidos,
enterrai vossas desavenças!


Assim Bertold Brecht homenageou Rosa Luxemburgo, morta em 1919, depois de um levante popular fracassado em Berlim.  Rosa tinha sido contra a proposta de insurreição. Sabia que a correlação de forças não era favorável. Voto vencido dentro do partido, podia ter escapado de Berlim para viver. Preferiu ficar na luta ao lado da classe operária. Com Berlim em estado de sítio, ela foi sequestrada por um grupo paramilitar de direita, espancada e assassinada a sangue frio.
Vale a pena ler Rosa Luxemburgo, em especial sua polêmica com Lenin. Rosa criticava o partido único e a restrição à liberdade na União Soviética. Dizia que Lenin estava fazendo não a "ditadura do proletariado", que deveria ser mais democrática que a democracia burguesa, mas uma "ditadura de partido", que acabaria degenerando em burocracia, corrupção, opressão sobre os operários. Contra a organização rígida dos bolcheviques, Rosa defendia a espontaneidade revolucionária do proletariado, as greves de massas e os conselhos operários.
A União Soviética deu no que deu. E nunca tivemos a oportunidade de ver um regime socialista com liberdade, sonho de Rosa Luxemburgo. As poucas tentativas foram rápida e violentamente sufocadas pela reação, repetindo Berlim 1919.

Essas mulheres VIII

Elis

Pimentinha nasceu em um bairro pobre de Porto Alegre, às margens do Rio Guaíba. Aos 11 anos estreou no programa Clube do Guri, na Rádio Farroupilha. No final dos anos 50, com pouco mais de 15 anos, ela já era uma estrela local. Em 1964 ela foi para São Paulo e estourou em todo o Brasil.
O diamante Elis Regina foi lapidado aos poucos, da cantora que agitava os braços como se estivesse nadando de costas à intérprete refinada dos anos 70. Eram tempos difíceis. Elis aproveitava a notoriedade para criticar a ditadura e lutar pela anistia. Os milicos resolveram que humilhar aquela atrevida era melhor que martirizá-la. Para não ser presa, Elis aceitou cantar o nino nacional nas Olimpíadas do Exército e quase que foi linchada pela intelectualidade de esquerda.
Ela gostava de lançar novos compositores. Deu a maior força para João Bosco, Gonzaguinha, Djavan, Renato Teixeira, Sueli Costa... tinha bom gosto, a gauchinha.
Elis Regina morreu em 1982, num episódio não muito claro. O legista encarregado da autópsia disse que era overdose. O problema é que o cara era conhecido por forjar laudos de "morte natural" quando os torturadores passavam do ponto.


Essas mulheres VII

Nise












Quando ela se formou na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1926, com apenas 20 anos, tinha 177 colegas de turma - todos homens. Um ano depois Nise da Silveira se mudou para o Rio e em 1933 começou a trabalhar como psiquiatra no Hospital da Praia Vermelha.
Em 1936 foi presa, acusada de ser marxista porque guardava uns livros proibidos em seu dormitório no hospital. Na Ilha Grande conheceu Graciliano Ramos, que a descreveu assim: "Uma senhora pálida e magra, de olhos fixos, arregalados. O rosto moço revelava fadiga, aos cabelos negros misturavam-se alguns fios grisalhos. [...] Sabia-a culta e boa, Raquel de Queiroz de afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se de tomar espaço."
Essa figura frágil foi a maior divulgadora da obra de Jung no Brasil. Nem se falava ainda em antipsiquiatria e ela já lutava pelo tratamento digno aos doentes mentais. Foi pioneira na terapia pela arte. Sem Nise, Bispo do Rosário, por exemplo, seria só mais um maluco preso em solitária e tomando eletrochoque. Em 1952 ela fundou o Museu de Imagens do Inconsciente. Em 1956 criou a Casa das Palmeiras, que oferecia tratamento sem internação.
Foi na Casa das Palmeiras que eu conheci Nise da Silveira, já velhinha - fomos entrevistá-la para a revista Rádice. Em um dia de festa passeamos pela casa toda, ela calma, quase sem falar, parando às vezes para acariciar um ou outro dos muitos gatos que viviam lá. No final ela perguntou: "está difícil rotular, não é?" De fato, não dava para saber quem era visita, quem era médico, quem era paciente.


Essas mulheres VI

Billie
Seu pai - que tinha apenas 15 anos -  abandonou a família quando ela era um bebê. Aos 10 anos ela foi violentada por um vizinho e internada em uma casa de correção. Aos 12 ela lavava o chão de prostíbulos. Aos 14 começou a se prostituir. Com 15 anos, sem dinheiro, com fome, ameaçada de despejo, ela entrou em um bar do Harlem procurando emprego. Ofereceu-se como dançarina, mas dançando era um desastre. O pianista do bar ficou com pena, perguntou se ela sabia cantar. Eleanor Fagan Cough cantou. Começava a carreira de Billie Holiday.
Bille cantou com Artie Shaw, Count Basie, Duke Ellington e Louis Armstrong, entre outros. Foi a primeira mulher negra a cantar numa orquestra de brancos (a de Artie Shaw). Mesmo sem saber música foi também compositora, criando alguns sucessos fantásticos. Mas a barra da sua vida era pesada demais. Ela entrou firme no álcool e em várias drogas, em especial a heroína, prejudicando a voz, a carreira e a vida. Morreu em 1959, com apenas 44 anos.


Essas mulheres V

Anita















Ela nasceu no Rio Grande do Sul, em 1821, casou com apenas 14 anos e parecia destinada à sina da mulher gaúcha daquele tempo: esperar na estância pela volta do marido guerreiro. Mas aos 18 ela largou tudo para se juntar ao italiano Giuseppe Garibaldi e participar na Guerra dos Farrapos como se fosse homem. Quando foi presa pelas tropas federalistas, aproveitou que tinha certa liberdade - afinal, era apenas uma mulher - para fugir, atravessar sozinha a linha de frente e se reencontrar com os rebeldes.
Depois de um rápido exílio no Uruguai, Anita e Giuseppe seguiram para a Itália, onde lutaram pela unificação do país e pela república. Nessa guerra ela morreu, aos 28 anos, grávida do quarto filho, perseguida por 55 mil soldados dos exércitos de Nápoles, da França, da Espanha e da Áustria.

Essas mulheres IV

Clementina
Em 1963 Herminio Bello de Carvalho estava na Mangueira quando ouviu músicas que ele nunca tinha descoberto em suas pesquisas sobre a música brasileira. Era uma senhora de 62 anos, cantando enquanto lavava roupa - Clementina de Jesus.
Clementina era a memória viva da música afro-brasileira. Jongos, lundus, corimás e outros ritmos já quase extintos, e mesmo sambas há muito tempo esquecidos ganhavam vida na garganta daquela empregada doméstica de voz inconfundível.
Aos 86 anos Clementina de Jesus foi cantar lá no Orum. Até o final da vida ela se apresentou em público. Eu tive o privilégio de assisti-la ao vivo, já bem velhinha. Clementina ficava sentada e dividia o palco com outros artistas, porque não tinha mais fôlego para cantar um show inteiro. Mas quando ela abria a boca... ah, quando Clementina cantava ela era a África, era os navios negreiros, era os escravos na lavoura, era os negros na favela, era sobretudo uma beleza maior que tudo isso, porque era universal.

Essas mulheres III

Marie
















Ela nasceu na Polônia, em 1867, mas desde jovem viveu em Paris. Imagina mulher ser cientista naquela época. Pois Marie Sklodowska Curie era - e tão brilhante que ganhou dois prêmios Nobel. Até hoje é a única pessoa a conseguir dois Nobel na área científica.
Em 1903 foi o prêmio de física, junto com seu marido Pierre e com Antoine Bequerel, por suas pesquisas sobre a radiação. Em 1911, sozinha, ganhou o Nobel de química, pela descoberta de dois elementos - o rádio e o polônio.
No mesmo ano de 1911 a Academia de Ciências de Paris rejeitava sua candidatura a sócia, preferindo acolher um cientista obscuro que ninguém lembra mais.


Essas mulheres II

Josephine
Maluquinha, a Freda Josephine McDonald, norteamericana naturalizada francesa, mais conhecida como Josephine Baker. Ela dançava semi-nua nas primeiras décadas do século XX, mexendo com o imaginário masculino. Às vezes se vestia só de bananas, aguilhoando o sexismo e o racismo ao mesmo tempo. Frenética, descadeirada, despudorada e cheia de caras-e-bocas, ela ficava no limite do escândalo consentido.
Pouca gente sabe, mas durante a ocupação nazista ela foi ativa militante da Resistência Francesa.


Essas mulheres I















Simone

Se você quer conhecer o capitalismo, deve ler O Capital, de Marx. Se quer entender o sexismo, precisa devorar O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. É um estudo exaustivo, que demonstra que a "mulher" é uma criação histórica e social que aprisionou por séculos metade dos seres humanos. E ainda aprisiona, de muitas formas.
História, sociologia, economia, literatura, cinema - nada escapa à sua análise cortante, de uma erudição quase inacreditável. Ainda por cima, o livro é muito bem escrito.
Se ela tivesse feito só isso, bastava. Mas Simone foi também uma romancista deliciosa e uma filósofa notável, em particular quando pensou a velhice e a morte. Coerente, ela viveu uma vida livre e militante, que escandalizou a muitos e encantou a poucos e bons.

5 comentários:

Gabriel disse...

Parabéns às meninas da Movimente-se e à todas as mulheres! Um brinde à todas que lutam contra as opressões que são sujeitas, desde as de ordem religiosa até a econômica!

...Coma leitura, beba arte e transpire cultura... disse...

que carinho. valeu!!!

Alex Willian disse...

Parabéns meninas, todo os dias são seus!
Faço às palavras do Gabriel as minhas.

Maga disse...

parabéns meninas!
ótima seleção dessas mulheres...
particularmente gostei da Josphine Baker, que assim como outras da seleção e eu nunca tinha ouvido falar...
o texto ficou muito bom tbm, foram vcs que fizeram???

parabéns...

Monica letras disse...

Meu que linda essa homenagem!!!
Essas mulheres que nos inspiram a continuar a luta pela nossa emancipação